Vila de Amor e Amizade onde não é preciso dinheiro
José Antonio Sestelo
Fui ao Japão pela primeira vez em setembro de 1995, quando as folhas começavam a cair na província de Mie em Honshu, a maior ilha do arquipélago. Lembro especialmente da beleza das cores, do sabor das frutas e do cheiro da palha de arroz depois da colheita.
Voltei no inverno, a tempo de experimentar a celebração do ano novo na Vila Yamaguishi do Toyosato, próximo da cidade de Tzu. Desta vez para ficar por mais tempo morando na Vila e freqüentando o seminário da Escola de Kensan em tempo integral. A Vila era uma comunidade agrícola anarquista ligada em rede com outros núcleos em todo o Japão. A base do seminário na Escola de Kensan era a reflexão em conjunto sobre as atividades práticas de trabalho e da vida quotidiana em uma perspectiva que, hoje penso, estaria ligada à tradição do budismo Zen japonês.
Conheci pessoas muito interessantes durante esse tempo. Foi aí também que conheci o AIKI DÔ. Não com esse nome, porque ninguém me disse que ali se praticava uma arte marcial. Era uma vila de agricultores onde se plantava arroz em consórcio com a criação de animais. O esterco, inclusive humano, era utilizado para preparar um composto e fertilizar o solo, e os vegetais eram utilizados para alimentar os animais. Usava-se também todo tipo de sobra e refugo de alimentação humana para fazer ração. O pessoal da vila uma vez recebeu um grande carregamento de bananas que vieram do Equador, mas haviam sido rejeitadas pelo importador porque estavam fora do padrão estético comercial. A carga seria devolvida ou teria que ser incinerada. A vila era uma sociedade onde “não havia nada para se jogar fora”.
As crianças viviam juntas desde pequenas e, na idade escolar, freqüentavam também a escola do bairro. Um dia vi uma cena que me impressionou. Um Sensei já velhinho recebeu os meninos para atividade física e recreação. No tatami fizeram uma brincadeira onde as crianças corriam para derrubar o Sensei com um ataque frontal. Não havia fila. Ia quem queria, na hora que queria. Primeiro uma, depois em grupos, depois todos juntos, os pequenos partiam decididos e eram arremessados delicadamente pelo Sensei de encontro ao chão. No final, o Sensei, que trabalhava cuidando das galinhas, mostrou um ovo.
Falou que o ovo era fertilizado e cheio de vida, pediu cuidado e... arremessou o ovo no ar. Um garoto voou e agarrou com a mão impedindo a queda, e o devolveu delicadamente para a o Sensei.
Trabalhei com as galinhas um tempo e tive oportunidade de conversar com os tratadores. Eles diziam que não estavam ali apenas para produzir ovos. Enfatizavam que cultivavam uma relação de harmonia entre eles, os animais e a natureza, e que o ovo era apenas um sub produto dessa relação. As galinhas viviam com os galos em quartos arejados e espaçosos e os ovos eram conhecidos em todo o Japão como “ovos da felicidade”.
Anos depois, no Brasil encontrei um grupo e comecei a praticar formalmente o AIKI DÔ. Agora na tradição de O Sensei Ueshiba trazida para o Brasil por Kawai Shihan, mas sem perder a ligação com os princípios que havia praticado desde o tempo de Japão.
Para mim ainda é algo misterioso e intrigante como é que se pode gerar harmonia, no trato das coisas do mundo seja lá o que for. Seja criando galinha, seja cuidando de criança ou se movimentando no tatami ao lado de um UKÊ.
Meu palpite é que todo movimento tem um ponto de origem, e que esse ponto está associado a uma intenção e a um sentimento. A forma específica que o movimento assume será sempre a forma de conveniência para um dado momento, e cada momento é único e não se repete jamais. Portanto não existe forma padrão que possa ser usada de rotina.
Na Vila o ponto central de convivência era o refeitório. Era ali que se celebrava a vida e se iniciava, pela boca, a produção do esterco para fertilizar o solo. Não havia nada para se jogar fora, porque partia-se do entendimento de que tudo que existe, mesmo os sentimentos humanos mais agressivos e violentos podiam ser, de alguma forma, harmonizados em algo que compõe, que integra.
O desafio e a beleza da forma residem na sua relação de harmonia com a paisagem, então, penso, o primeiro trabalho é procurar enxergar essa relação. O treino no tatami permite o confronto com a dura realidade física dos corpos humanos que se chocam, com a dor, com o medo, com o apego ao próprio pensamento e também com a leveza, com o desapego e a superação da barreira de fumaça dos limites humanos.
Não há nada prá se jogar fora, não há nenhum gesto que não possa ser aproveitado, não há nada que seja bom ou ruim por definição. No final, o “bom” é o que combina e, de fato, não é possível fazer nada que seja realmente bom, sozinho.
Tudo isso, no entanto, dito assim dessa forma, corre o risco de ser tomado como uma prescrição ou preceito moral para algum tipo de conduta humana, o que não é a minha intenção. De fato a intenção, o ponto de origem desse texto se resume em um convite à prática. Assim, cada um do seu jeito, sem tirar nem por nada de essencial, talvez se possa descobrir coisas interessantes tomando a vida como ela é...
Que tal? Vamos fazer juntos?
Lindo texto
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