O fato de conviver com outros idiomas durante anos a fio, como é o caso do senhor, traz alguma dificuldade para o ato de escrever?
João Cabral: "É uma das desvantagens do escritor que é diplomata e vive no estrangeiro. É difícil viver vinte e quatro horas falando uma língua e escrever em outra. Quando Vinícius de Moraes era cônsul em Los Angeles, Gabriela Mistral era cônsul do Chile : ela disse ao Vinícius que ia voltar para o Chile porque estava perdendo o espanhol. Veja só: ela encontrava dificuldades para escrever em espanhol vivendo em Los Angeles. É uma desvantagem que o diplomata tem. O diplomata de carreira - não o diplomata ocasional - ou pára de escrever ou tem uma obra pequena. O caso de Aloísio de Azevedo é típico. Depois que foi nomeado cônsul, não publicou mais nenhum romance!".
O senhor se lembra de algum caso em que a palavra em português tenha fugido durante esse período todo no exterior?
João Cabral: "Ah, claro! e comum, inclusive, a pessoa abrasileirar uma palavra estrangeira, coisas que, às vezes, enriquece o vocabulário do autor, mas, outras vezes, você tem de substituir, porque não dá...".
Por que o senhor tem tanta prevenção contra a subjetividade? Há um conceito mais ou menos generalizado de que a poesia é uma manifestação extremada da subjetividade...
João Cabral: "Há uma diferença. Tenho aversão à subjetividade. Em primeiro lugar, tenho a impressão de que nenhum homem é tão interessante para se dar em espetáculo aos outros permanentemente. Em segundo lugar, tenho a impressão de que a poesia é uma linguagem para a sensibilidade, sobretudo. Uma palavra concreta, portanto, tem mais força poética do que a palavra abstrata. As palavras pedra ou faca ou maçg, palavras concretas, são bem mais fortes, poeticamente, do que tristeza, melancolia ou saudade. Mas é impossível não expressar a subjetividade. Então, a obrigação do poeta é expressar a subjetividade mas não diretamente. Ele não tem que dizer "eu estou triste". Ele tem é que encontrar uma imagem que dê idéia de tristeza ou do estado de espírito - seja ele qual for - por meio de palavras concretas e não simplesmente se confessando na base do "eu estou triste".
Qual é a relação do senhor com a escrita, no dia-a-dia? O senhor diz que tem horror a trocar cartas. Quer dizer, então, que o senhor evita escrever?
João Cabral: "O negócio da carta é o seguinte: eu não gosto - realmente - de escrever carta. É um resultado de minha vida de diplomata. Sou diplomata desde fins de 45. Já faz quarenta anos. Quando vive no exterior, você tem de fazer tudo por meio de carta. É uma das coisas que leva o sujeito a acabar escrevendo cartas, porque em todos negócios e todas as coisas que ele tem para fazer, ele precisa escrever - para a família, para um amigo, o que seja. Em segundo lugar, não gosto de carta. E tem tanta gente que escreve até diário... Para mim, escrever o meu diário é uma coisa inconcebível. Ninguém é tão interessante para falar de si mesmo o tempo todo. Em carta, você acaba falando de si próprio. É como num diário. Se você está lá fora, isolado, e escreve uma carta para um amigo, é inevitável que você fale de seus estados de espírito - e dessa maneira errada que é falar do estado de espírito descrevendo-o. Agora, quanto a escrever, eu estou, permanentemente, tomando notas para poemas. Não tenho nenhum poema acabado depois do meu último livro ("Agrestes", 1985). Tenho notas para poemas. Um dia trabalharei nelas. Ou não. Se estou numa fase com menos trabalho e menos preocupação, começo, então, a trabalhar aquelas notas que tenho".
Parece que o senhor não tem nenhuma ânsia de escrever, esta é que é a verdade...
João Cabral: " Ah, não tenho..."
O senhor pode anotar um poema e guardar durante anos, esperar...
João Cabral: "E nunca escrever, também. Outras vezes, descubro uma nota anterior, elaboro e faço um poema, naturalmente".
O senhor diz que a poesia que faz não é para ser amada. Não é porque o senhor não quer ou o senhor gostaria que suas poesias fossem amadas?
João Cabral: "Não gostaria. O escritor corre o grande risco de se baratear. A popularidade é uma coisa terrível, nesse sentido. A popularidade acaba cercando o escritor e o artista de um mundo artificial e um interesse inteiramente artificial. O sujeito acaba fazendo aquilo que sente que o público gosta, em vez de fazer aquilo que acha que deve ser feito. Eu lembro de quando Manuel Bandeira fez oitenta anos. Havia quase manifestações populares, nas homenagens que fizeram a ele. Mas você acha que aquele pessoal algum dia leu Manuel Bandeira?".
O senhor se considera, então, o quê? Um poeta popular ou um poeta conhecido? O senhor é conhecidíssimo, mas deve achar que só conhecem o nome João Cabral, não a obra...
João Cabral: "É difícil dizer. O êxito teatral de "Morte e Vida Severina" é que tornou o meu nome conhecido. Mas não creio que minha poesia seja popular".
O senhor sempre diz que não gosta de fazer poesia dada a emoções porque o que se chama comumente de emoção é algo feito à base de um sentimentalismo fácil e barato. O senhor diz, pelo contrário, que "emoção é outra coisa". Mas nunca ficou exatamente clara a definição que o senhor tem de "emoção". Dá para explicar - de uma vez por todas?
João Cabral: "Minha definição de emoção não é nada de especial. É o que todos chamam de "emoção". O que acontece é que me recuso a explorar essa coisa diretamente. O interesse do poeta não é descrever suas emoções e criar emoções, é criar um objeto - se é poeta, um poema; se é pintor, um quadro - que provoque - emoções no espectador. Mas não explorar nem descrever a própria emoção. Quando digo que sou contra emoção é exatamente neste sentido: o de usar a minha emoção para fazer com ela uma obra, descrevê-Ia primariamente e construir, com ela, um poema".
Quer dizer, afinal, que o senhor não é exatamente contra a emoção: é contra a exploração da emoção...
João Cabral: "Exatamente! (Faz ar de alívio, como se a charada estivesse resolvida). Quanto a esse descrever da emoção e da sentimentalidade, a grande maioria da poesia que se escreve no mundo é assim. A obrigação do poeta, repito, é criar um objeto, um poema, que seja capaz de provocar emoção no leitor".
O que é que o senhor chama de "emoção intelectual"? Já vi o senhor usando esta expressão...
João Cabral: "Um grande crítico americano uma vez disse o seguinte de uma poetisa americana, Edna Miller: que ele não gostava da poesia que ela fazia porque não tinha interesse intelectual. É nesse sentido que eu digo. Você pode ver perfeitamente quais são os escritores que têm um interesse intelectual e quais são os que não têm. Confesso que o escritor que não tem interesse intelectual não me interessa. A mim, me interessa enormemente a poesia de Joaquim Cardozo, mas nunca me interessou a poesia de Emílio Moura - de Minas Gerais. Eu sinto que não tinha interesse intelectual. Não só a poesia de Emílio Moura, mas a grande maioria dos poetas brasileiros. Aliás, dos poetas brasileiros, não, mas do que se chama no mundo todo de poesia. Um homem de mediana inteligência não vê interesse intelectual naquilo. Tenho a impressão de que pode ser um defeito meu. Mas confesso. A atividade intelectual é uma coisa que seduz. Vivo para ela. Quando leio um poeta que só é capaz de provocar essas emoções correntes, como saudade, melancolia ou tristeza, essa coisa não me interessa. Ora, se tenho minhas emoções, para que vou buscar emoções semelhantes numa outra coisa?".
Quando o senhor se auto-intitula um "poeta artificial", o senhor se refere ao trabalho quase artesanal que tem com a poesia?
João Cabral: "Não apenas. Os assuntos que uso na poesia são "tirados pelos cabelos", como se diz. Fiz um poema sobre o ato de catar feijão. Você não imagina Alfonso de Guimarães, o pai, grande simbolista, fazendo um poema sobre o ato de catar feijão..."
O resultado poético do trabalho do senhor é obviamente sofisticado, sob o ponto de vista intelectual. Isso contradiz a intenção de fazer uma coisa simples? A que é que o senhor atribui esta defasagem entre a intenção de fazer uma coisa simples e o resultado - que é indiscutivelmente sofisticado?
João Cabral: "A coisa simples que quero não é fazer uma coisa boboca. O simples que almejo é chegar a uma forma que os outros entendam. Consigo raramente. e difícil traduzir as coisas de que falo de uma maneira acessível a todo mundo. Minha luta é esta: tentar botar uma coisa mais complexa numa linguagem mais simples possível. Confesso que geralmente eu fracasso".
Além de dizer que é um poeta artificial, o senhor também se considera um poeta não espontâneo. Acontece que estes dois conceitos se chocam de novo com o conceito generalizado de que a poesia é algo não artificial e espontâneo...
João Cabral: "Exatamente. Valerie dizia que tudo que vinha a ele espontaneamente era eco de outra pessoa! Ele só acreditava numa coisa que ele fizesse com rigor intelectual, porque durante este trabalho rigoroso ele eliminava tudo o que, nele, era dos outros. O homem acha, em geral, que tudo o que se faz artificialmente é falso e não diz nada dele. Vejo exatamente o contrário: o que você faz espontaneamente é eco de alguma coisa que você leu, ouviu ou percebeu de qualquer maneira".
A popularidade - é o que o senhor diz - pode prejudicar o poeta. A popularidade prejudicou Carlos Drummond de Andrade, Vinícius de Moraes e Manuel Bandeira?
João Cabral: "Não. Vinícius, no fim da vida, dedicou-se inteiramente à poesia popular, à música popular. Agora, Manuel Bandeira e Carlos Drummond são sujeitos de tal integridade que não foram corrompidos pela popularidade. Nem todo mundo tem integridade para resistir. Em geral, o sujeito acha bom e barateia a produção para ser agradável. Baixa o nível para ser agradável..."
O poema que é tido como marca registrada do João Cabral de Melo Neto é o 'Morte e Vida Severina'. E é justamente este que o senhor chama de "poema fracassado". Por que um julgamento tão cruel?
João Cabral: "Nunca chamei de fracassado. "Morte e Vida Severina" foi um poema que escrevi: não trabalhei. Eu escrevi a pedido de Maria Clara Machado e não trabalhei como trabalho em outras coisas minhas. Eu sinto que é um poema que não me satisfaz. Mas foi um poema bem levado para o teatro e a televisão. Ficou popular. Mas sinto: é um poema que não trabalhei, porque eu tinha um prazo para escrevê-lo".
O 'Morte e Vida Severina' é considerado uma obra-prima. O senhor, então, não assina embaixo desse julgamento...
João Cabral: "Não! Dentro de minhas coisas, acho "Morte e Vida Severina" a menos realizada. E a mais escrita na perna...
É frustrante saber que os Severinos e as Severinas da vida real não vão ler o 'Morte e Vida Severina'?
João Cabral: "Quando escrevi "Morte e Vida Severina", tinha a impressão de que seria uma coisa tão popular quanto os romances do Nordeste, os romances de cordel. Quando o livro saiu, vi que quem me elogiava eram os intelectuais. Eu lembro do entusiasmo de Vinícius de Moraes. Eu disse: "Vinícius, não escrevi para você! Para você, escrevi outras
coisas!". Eu tinha a impressão de que estava escrevendo aquele poema para o povo. Quase me danei...".
A condição de intelectual e poeta num país como este - em que a grande maioria da população não tem acesso à produção intelectual - é frustrante?
João Cabral: "Pelo meu temperamento, nunca gostaria de ser um escritor popularíssimo. O fato de não ser popular me dá tranqüilidade. Não vivo de escrita. Se vivesse de escrever, gostaria de ser popular, porque os direitos autorais seriam grandes. Mas, como não vivo de escrever, a falta de popularidade não me frustra. Ao contrário".
Um intelectual deve falar em nome do povo?
João Cabral: "O que é que você quer dizer?"
O senhor acha que o intelectual deve ser porta-voz dos anseios populares?
João Cabral: "Se ele está identificado com os anseios populares e se ele acha que é capaz de expressar os anseios populares, claro. Mas é preciso que ele esteja identificado com os anseios populares - e não com o programa de um partido político - que dura dois anos! Eis o negócio. Você fala em povo. Mas o que é povo? O que é o povo brasileiro? O que é o povo de qualquer país? É uma quantidade enorme de pessoas, com interesses contraditórios. Como falar em nome do povo? Você fala em nome de uma classe, em nome de uma idéia - que pode estar no povo".
Quando o senhor estava em Barcelona, leu numa revista que a expectativa de vida no Recife era menor do que na Índia e se sentiu profundamente chocado. Depois, o senhor disse que deveria escrever algo denunciando...
João Cabral: "Eu escrevi "Cão Sem Plumas", já disposto a não escrever mais nada na minha vida".
O senhor acha, então, que o poeta deve reagir a estas agressões da realidade?
João Cabral: "Não sei se deve reagir. Eu reagi. Agora, se todo mundo é capaz de reagir ou se todo mundo deve reagir, é um problema que deixo a cada um".
Paul Eluard dizia que a função do artista é "dar a ver". Qual é a diferença entre o "dar a ver" e a denúncia?
João Cabral: "Eluard chamou de "Dar a Ver" um livro de poemas que ele fez sobre os pintores. Quando digo "dar a ver" é porque a minha poesia, em primeiro lugar, é mais visual do que musical. Em segundo lugar, digo "dar a ver" porque o poeta deve mostrar realidades sem tomar partido. Você mostra a realidade. Cada pessoa que veja como quiser. Depois de "Morte e Vida Severina", eu não botei no fim algo como "Façam assim!". Não apresentei solução, porque esta não é função do artista. A função do artista é expressar a realidade. Os administradores, os políticos, quem seja, que resolvam o que há de injustiça nessa realidade. Não é obrigação do artista".
O Brasil, hoje, como país, satisfaz o senhor? O país melhorou?
João Cabral: "Durante o ano de 1986 foram tomadas boas medidas. Tenho esperanças nelas. O negócio é que o mundo é complicado. Você pergunta a um francês... ele votou no Partido Socialista na eleição de François Miterrand e imaginou que a França fosse melhorar. Depois, os socialistas perderam a maioria no Congresso. Isso não é uma coisa permanente. O Brasil está numa boa fase. Acredito que os políticos, os administradores estão querendo resolver certos problemas. Não quer dizer, no entanto, que daqui até o fim do mundo o Brasil tenha resolvido os seus problemas. Em primeiro lugar, porque estes homens podem mudar mas, depois, pode vir uma orientação diferente".
O senhor tem aversão total à música; só conhece de ouvido o Hino Nacional e o Hino de Pernambuco. De onde é que vem, afinal, esta aversão à música? Qual é a lembrança mais remota que o senhor tem desse horror à música?
João Cabral: "Não tenho nenhum ouvido musical. Você pode tocar uma música conhecidíssima. Eu não distinguirei uma da outra! O que lembro é que, desde menino, eu era o filho desentoado. Já no coro do Colégio Marista, mandavam que eu fingisse que estava cantando, mas não cantasse, porque saía tudo desentoado. Você pode não ter ouvido musical, não saber cantar e, no entanto, gostar de música, a chamada música clássica. Mas vou dizer uma coisa que aconteceu comigo. Tive minha infância e adolescência no Colégio Marista. Nós éramos obrigados a uma missa semanal. Era uma missa cantada. Nós éramos obrigados a ir diversos dias à Igreja, para ouvir canto sacro. O que estragou um possível gosto meu pela música foi a música religiosa que me era imposta, quando eu era menino e adolescente. A música significava, para mim, tédio. Eu ficava naquele banco de colégio ouvindo aquela música de órgão, aqueles sujeitos cantando... e era incapaz de me concentrar naquilo. Ficava pensando em outra coisa. A música religiosa extinguiu em mim qualquer possível futuro em música".
Depois desse trauma de infância, o senhor, então, não conseguiu ter interesse em música...
João Cabral: "Isso estragou até a minha capacidade de atenção. Se há uma coisa que me dá sofrimento é um concerto. De vez em quando, sou obrigado a ouvir um. Ir a um concerto é um inferno para mim. Você pode dizer o seguinte: "Eu estou impondo a este infeliz duas horas de sofrimento". E essa coisa estragou minha capacidade de atenção auditiva. Quando estou conversando, sigo o que a pessoa diz. Mas essa coisa de rezar tantas vezes por dia e a música no colégio estragaram a minha capacidade de ter atenção para uma coisa que me entra pelo ouvido. Outro sofrimento é ir a uma conferência e ouvir um discurso. Sou incapaz de compreender. Fico pensando noutras coisas e não no que o conferencista diz. De repente, volto para o que ele está dizendo; sou até capaz de entender uma ou duas frases, mas minha atenção se perde outra vez. Fico como uma pessoa que está nadando debaixo do mar e de vez em quando sobe para respirar. Tenho a impressão de que estragaram a minha capacidade. Quando quero entender alguma coisa, leio".
O pior de tudo é que o senhor, como cônsul e embaixador, é obrigado, por dever de ofício, a ouvir discurso...
João Cabral: "Claro! De concerto eu fujo. Mas, numa solenidade, você não pode fugir. Eu confesso: o sujeito está falando e eu pensando noutra coisa... Sou incapaz de me concentrar numa conferência ou num discurso".
Naquele tempo das rezas no Colégio Marista que idade o senhor tinha, exatamente?
João Cabral: "Dos oito aos quinze anos. Era no Recife. Primeiro, no Colégio São Luís - que é Marista também - em Ponto Uchoa. Depois passamos para o Colégio Marista, na avenida Conde da Boa Vista, no centro da cidade".
Que relação o senhor tem com Pernambuco, hoje? A presença de Pernambuco na poesia que o senhor escreve ainda é forte. Há, no livro "Agreste", várias passagens sobre Pernambuco - e particularmente a Zona da Mata.
João Cabral: "Eu saí de Pernambuco com vinte e dois anos, na véspera de fazer vinte e três. Da primeira vez que saí de Pernambuco, passei onze anos sem ir até lá. Eu saí em 1942 e voltei em 1953. Mas nunca superei o fato de ser obrigado a viver fora de Pernambuco. Sempre dou um pulo lá, embora Pernambuco seja bem diferente do que eu conheci. O Recife, então, está inteiramente mudado. Em todo caso, volto sempre. Toda oportunidade que tenho vou por lá. A gente não pode dizer o que é que vai falar no futuro. Mas tenho a impressão de que a gente escreve sempre sobre as impressões da infância e da adolescência. Nesta época, o homem é mais sensível. Grava mais as coisas. Então, forçosamente, nunca poderei me livrar dessa impressão de Pernambuco sobre mim. Imagino que ela continuará".
Onde é que o João Cabral poeta estará no futuro? O senhor deve abandonar a carreira de diplomata em 1990...
João Cabral: "Com a nova lei, tenho a impressão de que já devo me aposentar em 1987. Não creio que vá viver em Pernambuco. Gostaria, mas acontece que - dos meus cinco fIlhos - quatro moram no Rio e uma filha em Honduras. Quando me aposentar, irei morar em Petrópolis, porque estarei perto deles e ao mesmo tempo não estarei no Rio. É uma cidade que não me agrada nada. Nunca me agradou".
O que é que assusta o senhor no Rio de Janeiro?
João Cabral: "As distâncias, o movimento, o tráfego e o calor. É aquele calor desagradável... O calor aqui no Rio é abafado. O de Pernambuco é um calor ao ar livre. Até há um poema de Manuel Bandeira: "Vamos viver de brisa”. Faz calor no Nordeste, mas lá existe brisa. O calor do Rio é um calor sem brisa".
O senhor acha que, quando se aposentar e se dedicar somente à poesia e à literatura, essa relação acidentada que o senhor tem com o ato de escrever vai ser, afinal, pacificada?
João Cabral: "Eu estou com sessenta e seis anos. Escrever poesia me é difícil. Não sei se, nessa idade, ainda terei coragem de enfrentar o trabalho de um novo livro de poemas. Imagino, em minha aposentadoria, ter uma casa agradável em Petrópolis. Eu me imagino lá fazendo aquilo que gosto de fazer: não sair de casa. Detesto sair de casa. Em segundo lugar, ler. Neste negócio, sou caseiro. É um traço que, talvez, eu tenha puxado de minha mãe. Quase não vi minha mãe sair de casa. Ela ficava meses e meses e meses sem sair de casa. Não visitava nem os filhos. Os filhos é que iam visitá-Ia, porque ela não gostava de sair de casa. Eu sempre fui de ficar em casa. Com a idade, este traço vem se agravando cada vez mais".
O fato de levar uma vida mais descansada, sem compromissos sociais, vai acalmar esta relação do senhor com o ato de escrever - que é algo torturante...?
João Cabral: "Não. Eu escrevo com dificuldade. Mas, a mim, não me irrita só escrever com dificuldade. Se, um dia, eu escrever com facilidade deixarei de escrever de vez. A facilidade não leva a nada. Você vê, por exemplo, em matéria de futebol. A seleção brasileira jogou mal mas jogou melhor contra a Espanha. Por quê? Porque tinha um adversário forte pela frente. E estava acostumada a jogar com juvenis, contra os juvenis. Em jogos fáceis, a seleção não se revelava. A seleção, então, começou a jogar direito (N: João Cabral se refere ao jogo Brasil 1 x 0 Espanha, na Copa do México). A facilidade não conduz ninguém a nada. Ainda que, de repente, baixar o Espírito Santo e eu começar a escrever com facilidade, espero ter a coragem de deixar".
O senhor seria capaz de escrever uma coluna diária num jornal?
João Cabral: Acredito que não. Para mim, seria difícil. É uma atividade que não me seduz. Para mim, seria difícil escrever uma crônica diária. Não me seduz.
É como escrever carta. Quem escreve uma crônica acaba falando de si".
Nesses quarenta anos de vida diplomática, o senhor conheceu centenas de grandes personalidades da área intelectual e política. Qual foi a que mais marcou o senhor?
João Cabral: "Miró me impressionou enormemente. Eu o conheci da primeira vez que estive em Barcelona. Quando fui embaixador no Senegal, o presidente Senghor me impressionou enormemente, porque é um homem extraordinário".
Como ex-jogador de futebol, o senhor acha que o futebol faz bem à saúde mental do povo brasileiro?
João Cabral: "Ah, eu gosto de futebol! Mas, agora, como não vivo no Brasil, não vou a futebol. A grande vantagem do futebol brasileiro é que é o único futebol que você assiste sem estar interessado na vitória de um clube. Você assiste porque é um espetáculo bonito. Com futebol europeu não acontece. Você não vê uma jogada maliciosa, não vê um gesto harmônico, não vê elegância. Só aquela correria. E correria não me interessa. Só consigo me interessar pelo futebol brasileiro. Há os que gostam de ver futebol porque gostam de ver o time predileto ganhar. Mas acontece que meu clube é o América. Ganha tão pouco... então, gosto de futebol não para ganhar. Gosto pelo espetáculo. Eu era América no Recife. Quando voltei para o Rio, era normal que fosse América também. Joguei um campeonato pelo América, no Recife. O Santa Cruz tinha chegado ao fim do campeonato empatado com o Torre, um clube que nem existe mais. O Santa Cruz não tinha center-half. Então, descobriram que a minha mãe era fanática pelo Santa Cruz, embora nunca tenha ido a um jogo de futebol. A diretoria do Santa Cruz, então, foi pedir à minha mãe que me fizesse jogar pelo Santa Cruz. Joguei. Disputei o campeonato com o Torre e fui campeão juvenil pelo Santa Cruz, em 1935".
Daí é que surgiu a famosa dor de cabeça que o acompanhou durante décadas?
João Cabral: "Não. Minha dor de cabeça começou quando eu tinha dezesseis anos e foi uma das coisas que me fez largar o futebol. Naquele tempo, eu não podia correr, porque vinha a dor de cabeça...".
Já passou?
João Cabral: "Não. Hoje, talvez esteja um pouco melhor. Com a idade, talvez ela doa menos. Mas ainda sou obrigado a tomar remédios..."
Quantas aspirinas o senhor toma por dia?
João Cabral: "Não posso mais tomar aspirina. Depois dessa hemorragia gástrica que tive, em novembro de 85, os médicos me proibiram de tomar aspirina. Agora, tomo outros calmantes".
Que informação o senhor tem sobre a poesia que se faz hoje no Brasil?
João Cabral: "Não conheço bem a poesia brasileira posterior a mim. Só conheço os livros dos poetas que me mandam livro. Poucos são os que me mandam. Lá fora, não encontro estes livros para comprar. É difícil, para um escritor, julgar o pessoal que vem depois. Um sujeito pode julgar bem os anteriores a ele. Mas julgar uma geração mais nova é difícil, porque essa geração vem com uma experiência que o mais velho já não tem. Eles escrevem sobre as experiências que eles têm e eu não tenho. Não vivo aquelas coisas. Sou de uma outra geração. Minha sensibilidade estava mais aguda em determinadas fases de minha vida. O Brasil de minha mocidade não é o Brasil da mocidade desse pessoal. A vida que eu levava como jovem não é a vida que eles levam. Eu seria injusto se julgasse, porque eles falam de uma experiência e de uma visão de vida que não são as minhas. Em geral, não gosto de julgar os autores mais jovens do que eu. Viveram num tempo que não vivi, foram jovens num tempo em que eu já não era jovem e levam um tipo de vida que não é a que eu levei".
Desses poetas posteriores ao senhor, a poesia de um Afonso Romano de Santana, por exemplo, lhe agrada?
João Cabral: "Conheço. É um poeta interessante. Afonso Romano é um desses sujeitos que escrevem poesia sabendo que é poesia. Não escreve poesia de oitiva. É um homem culto, um professor. A.gente vê que ele leu um bocado. A poesia que ele escreve não é improvisação nem uma coisa gratuita. Não é o resultado de bossa. É o fruto de uma consciência intelectual".
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