"Amigos proponho aqui uma reflexão e quem sabe um grande engajamento!
Que sou afeita a uma cerveja gelada num boteco anacrônico com os mais variados personagens a freqüentar um balcão, não é novidade. Que, além disso, ando penando para salvar minha verve de esquerda diante de tamanho esfacelamento de utopias, é mais que sabido. Certamente vocês, meus amigos, vivem dramas similares. O que até então eu não havia pensado, ou melhor, sistematizado era o quanto esse drama pode ser exasperado e digerido no melhor dos sítios, o boteco. Explico: não falo aqui daquelas conversas infindáveis que culminam em monólogos em grupo sobre formas de reagir a Bush e engolir Lula .... o insight é de outra ordem!
Falo de nossas pulverizadas formas de resistir à lógica do capital e suas crias! Claro já tentamos de tudo: DCE, sindicato, boicotes à Nike enfim ... partes que nos cabem neste latifúndio, ops... partes que nos cabem neste assentamento!! Mudemos o texto de Cabral... o de João e o do Álvares!!! Anos de resistência e sempre nos sentimos devedores à causa, pois catalogamos atitudes de efeitos minimalistas... Mas, eis que surge o insight... Lá estava eu vindo de um programa capitalista no último volume. Bairro: Leblon! Cruzei com o ícone do mundo fantasmagoricamente belo e sem antinomias: Manoel Carlos. O narrador do sonho burguês. Cruzei com ele no shopping do Leblon e lembrei o quanto ele fez um Photo shop no Rio de Janeiro em sua última novela....pensei: Leblon....é Leblon. Daí comecei a entrar no clima Photo shop social: vitrines, Livraria Travessa...cafés...puro Glamour. Pasmei ao olhar os fetiches do capital....ô maravilha (em tom baixinho)...Daí eu e minha amiga Nelma, também afeita aos botecos, sindicatos e ao glamour resolvemos voltar pra casa a pé, meio que intimando o acaso...E AÍ?
Surge então o Popeye!!! Não o marinheiro também ícone da referida lógica do capital e seus produtos para fortalecimento de músculos e egos! Mas o boteco Popeye! O último boteco da Visconde de Pirajá-Ipanema! Geograficamente comprimido entre lojas de griffe e restaurantes de culinária internacional, o Popeye se impunha monstruoso não obstante suas medidas! Uma esquina, ah! Uma esquina! Essas coisas que Brasília não tem (em todos os sentidos)!!!! E lá estavam personagens de todas as épocas e épicos...estrangeiros com português fluente, bêbados, esposas ciumentas, amigos do futebol e transeuntes, como nós, que não resistiram ao cenário ao céu aberto cuja musica executada variava da bossa nova à nona de Bethoveen! Nesta esquina músicos tocavam e se avolumavam....todos que, por obra do acaso, passavam ali com instrumento na mão permitiam-se acatar os sinais que a deriva que é a vida oferecia... e como se estivessem sido escolhidos por divindades, paravam e retiravam o instrumento da bolsa...a Big Band ia se formando....Eu testemunhei no Popeye, o bar de um portuga mau humorado (quase um pleonasmo isso), um churrasco coletivo em pleno vapor...entre notas dissonantes, um pratinho circulava... Pensem numa picanha macia??? Num chopp bom... e nos amigos de infância que rapidamente se formavam...pensem nas gentilezas dos senhores galanteadores, nos depoimentos de histórias de vida que jorravam depois de uma rápida apresentação...ali todos comiam junto o churrasco coletivo, todos toleravam a lerdeza do garçom que servia o chopp, o mau humor do portuga, a imundície do banheiro, os rodopios do mendigo que insistia em dançar como nos musicais da Broadway ( fazendo jus à Big Band)... O tempo não era o do “time is money”... havia ali naquela esquina de Ipanema um experiência de tempo que não a do capital, não a da rapidez dos produtos! O tempo da fabricação, da produção, uma das formas mais impositivas do capitalismo era simplesmente negligenciado! E ninguém levantava bandeiras para tanto! Rompido o imperativo do tempo...outros ícones do massacre selvagem do capitalismo sucumbiam. Ninguém quis saber dos proventos alheios, dos contra-cheques, das posses e declarações de imposto. Todos estavam no mesmo patamar social...todos, exceto o mendigo dançarino que incomodava mais pela sua ânsia de roubar todo o palco (o passeio) do que pelos trapos que eram suas vestimentas. Afinal, todos estavam com poucas vestimentas...das concretas que tampam o corpo às simbólicas que mascaram a “persona”...como diz Sartre, todos estavam: “nus como minhocas”!! E o diálogo era fluido, às vezes trôpego dada certa embolação na língua... e os amigos se formavam sem carta de procedência...o espaço não tinha a propriedade consolidada....todos em pé, circulavam de roda em roda de conversa, despreocupados sobre quem seria caça e quem seria caçador na segunda-feira. Quem ocuparia este ou aquele endereço comercial no dia seguinte. Estas questões não cabem num boteco.. Muito menos num do tipo Popeye, cujo banquete circulava coletivamente de mão em mão. Ali a loucura não era medicalizada, os tipos não eram diagnosticados, os estratos sociais demarcados! Ora, mas não era essa ruptura que sonhávamos??? Um tempo que não o da produção em série, um convívio com o diferente que não o da classificação sócio-psiquiátrica? Uma música que não o “jabá”? Uma rua que não sirva exclusivamente para perpetuar o comércio da indiferença? Uma comida que sirva a todos?
Os discursos que nos penetram e encarceram ali não recebiam tributo. Senti-me numa revolucionária experiência de ruptura em relação às amarras do capitalismo. Lúdica ruptura, mas efetiva. No coração do glamour de Ipanema um nicho de resistência sem bandeiras em punho, com copos na mão, versos na cabeça e muita disposição. O último boteco, BOTECO, no seio do comércio de elite. E digo BOTECO com maiúscula, pois estamos cansados de ver por aí “produtos-boteco” ou botecos de decoradores (mais um serviço vendável) que reproduzem o ambiente físico, mas não o vivencial! Montam os garçons com modelitos a “la boteco”, mesas e pisos seguindo o figurino, esquecendo que o boteco é o lugar da des-configuração! Da ruptura. E estes que não são lançamento do último verão, estão exíguos... agonizantes. As vivências que ali se engendram, se agenciam, estão minguando e os verdadeiros boêmios – expatriados – obrigados a beber em “delicatessem” ou a fenecer em casa...
Há muito eu já não ia à porta de fábrica, fiz isso na graduação.
Há muito não panfleto, fiz isso há um tempão.
Há muito eu não acredito nas assembléias sindicais, apesar de fazer isso até hoje.
Mas, há muito vou a botecos...dos copos sujos, de corpos não assépticos...palco de narrativas tortuosas, de desejos pouco nobres, mas de solidariedades raras, de lógicas insurgentes ou para-consistentes....contudo, só agora, depois do Popeye compreendi o magnetismo que este canto sempre exerceu sobre mim...Ali, entre um copo e outro...um texto e outro, estagnamos o trator que tece homogenias temporais, culturais, vivenciais!!!! Nós, simples freqüentadores cheios de filosofias e teses esdrúxulas proferidas na mesa às vezes professoralmente, às vezes de modo ininteligível....Nós que ouvimos e desfiamos queixumes de todas as ordens entre um salame e um ovo rosado... Nós que amamos determinado garçom como a nossos professores da infância... Nós que nos entregamos à deriva ao boteco, sem anunciar ou até mesmo intuir, estamos quebrando imperativos dos mais virulentos... criando outros tempos, outros espaços, outros modos de elos humanos. Tomando esse aguardente que nunca sacia, fazemos revolução molecular...num âmbito que os marxistas de plantão nunca entenderiam!!!!!
Um brinde aos agenciamentos transgressores do Boteco!! Às esquinas, aos garçons, aos meninos, às meninas! E que o mau humor dos “portugas” nunca seja vítima da fluoxetina, a lerdeza dos garçons do treinamento empresarial, a imundície do banheiro da vigilância sanitária! Para que possamos continuar a tomar importantes decisões de nossas vidas neste templo de rupturas!
Ao engajamento etílico, companheiros!"
(Caroline Vasconcelos)
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