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sexta-feira, 25 de setembro de 2009

Amizades.


No início da noite de sábado ela me ligou dizendo que queria sair pra se divertir e que Bruno - meu amigo - tinha sumido. Pensei: a tarefa era do cara, ele é brother, deve estar ocupado, eu posso quebrar esse galho, eu pretendia sair mesmo, ela é mais amiga dele, mas também é minha amiga, "receba bem o turista",  etc. Assim, ingenuamente, me ofereci pra dar uma de cicerone naquela noite. Na tarde anterior Bruno e eu tínhamos nos falado, eu o havia convidado pra um evento, ele disse que não poderia comparecer porque iria a um casamento em Lauro de Freitas. Aparentemente a nossa amizade estava bem. Agora sei que ele foi maquiavélico, no sábado desligou o celular, e na sexta à noite havia sugerido a ela que me telefonasse. 


Marquei com ela num bar que eu costumava frequentar. O lugar estava cheio. No inicio tudo correu bem, mas depois que ela bebeu 4 latinhas de SMIRNOFF ICE, a coisa degringolou: empurrava todo mundo, pisava no pé de quem estivesse por perto, queria que todo mundo abrisse espaço pra ela dançar, queria tapete vermelho pra passar. Brigou na fila do banheiro, humilhou a menina do caixa, discutiu com o segurança, quase bateu numa loura que estava olhando pra ela. Um vexame! 


Finalmente consegui despachá-la, mas não sem que ela me desse algumas tarefas. Ela exigia: fazer aulas de surf, falar com Dadá, fazer um dread, e ouvir reggae ao vivo, preferencialmente na véspera de ir embora. Domingo, dia de descanso e ressaca, fui à luta: pesquisei, e enviei a ela, por e-mail, os contatos de uma boa "escola de surf", os telefones e endereços dos restaurantes de Dadá, e dois links a respeito de dreads. Comecei a ver com quem ela poderia fazer o dread, e onde, nos próximos dias, haveria regueiros tocando em bares.


Ela me ligou na segunda-feira, queria ir fazer o dread. Marcamos num ponto de ônibus perto do Pelourinho. Ou melhor: marquei no "fim-de-linha" dos ônibus de ar-condicionado que vão pra Praça da Sé. Ônibus convenientemente frescos, difíceis de confundir, passam perto da casa onde ela estava hospedada. Não é que ela conseguiu se perder? Fiquei esperando quase 1 hora. Ela chegou. Achei que me faria bem tomar um sorvete nA Cubana do Elevador Lacerda. Quando eu estava saboreando o meu sorvete de ameixa, ela começou: "Eu não sei porque tanta onda em torno de um elevador da OTIS, toda cidade tem milhares de elevadores da OTIS e ninguém fica fazendo cartões postais com eles, o elevador nem é panorâmico, o trajeto só dura 10 segundos, coisa de gente preguiçosa colocar um elevador no meio da cidade, blablabla...". Tava dificil me fingir de guia de turismo simpático...


Mal chegamos ao Pelourinho, ela caiu no golpe da fitinha do Senhor do Bonfim. Em consequencia disto acabei participando de um esquema de compra de crack, pois a simpática que ofereceu uma fitinha e pediu dinheiro pra comprar pão e leite, certamente foi comprar um outro gênero de primeira necessidade num ponto de venda próximo.


O objetivo era fazer o dread. Eu achei que seria fácil mas, com ela nada é fácil. Queria uma argolinha de prata no dread, queria que a argolinha fosse de determinado tamanho e tivesse um certo desenho, não podia ser miçanga, não podia ser de plástico, etc. Depois de pesquisarmos junto a 15 "dredeiras", tive uma idéia luminosa! Disse a ela que havia lembrado de um lugar perfeito. Fomos nos dirigindo ao tal local, e eu casualmente puxei o assunto de Dadá, perguntei se ela já tinha ligado pra algum dos restaurantes. Ela se soltou: "Ainda não liguei, foi bom voce ter me lembrado, eu nao posso sair de Salvador sem falar com a Dadá, se ela souber que eu estive aqui e não procurei ela, ela me mata, nós somos amigas de infância, eu vou te levar pra jantar lá, voce pode levar sua namorada e quem mais você quiser, a gente não vai pagar nada, blablabla...". Eu ouvia, e ria por dentro.


Chegamos ao atelier de Negra Jô. Ela já entrou parecendo que tinha passado a vida inteira no Curuzu, tipo "Tô completamente à vontade aqui, sou local, sou negona desde pequenininha". Outro vexame. Todo mundo percebeu a farsa, ela com aquela tinta desbotada na pele e aquele sotaque que basta ela dizer "Oi", que alguem pergunta "Voce é mineira?". Ela é goiana. A menina que a atendia começou a fazer o dread possível, tendo em conta o cabelo da moçoila. Quando ela viu o resultado parcial, foi outro escândalo: "Eu sou preta roots, quem faz trancinha é gringo, o que é que vocês tão pensando, eu quero um dread  grosso, e quero da grossura do rabo daquele gato!". Eu, morto de vergonha, disfarçadamente fazia um movimento circular com o dedo indicador apontado pra minha orelha. Somente assim consegui a tolerância da galera do atelier. As meninas tentaram resolver, chegaram a colocar uma espécie de prótese, mas era impossível, o dread que ela queria simplesmente consumiria todo o seu rabo-de-cavalo. O trabalho foi concluído, ela pagou, eu agradeci e me desculpei, saímos.


Pensei: é agora! Sem que ela percebesse, fui andando em direção ao "Sorriso da Dadá", que fica bem perto. Quando chegamos na porta do restaurante, eu disse: "Taí a sua oportunidade de ver Dadá!". A moça ficou pálida: "O que? Dadá?!? Onde? Ah... mas ela não deve estar aí agora...". Sugeri que ela fosse verificar com o segurança. À distância, vi o rapaz acenar afirmativamente com a cabeça, e fazer um gesto largo, o braço esquerdo indicando a entrada. Ela voltou, sem graça, e disse que Dadá não estava. Eu gargalhava por dentro.


A esta altura eu precisava de uma bebida. Entramos na Cantina da Lua, participante da primeira edição do COMIDA DI BUTECO em Salvador. Ela começou a dizer que o festival de Salvador era o pior do Brasil, que o tira-gosto que estávamos comendo era fraco, blablabla. Eu precisava de uma bebida mais forte, e quis mudar o tema, então pedi uma caipirinha de cravinho. Dificilmente ela ia poder dizer que a caipirinha de cravinho do boteco na esquina da casa dela era melhor, pensei. Ofereci a ela. Outro erro. Ela começou a desfiar a lista de coisas com sabor forte que ela nao gosta: cravo, canela, coentro, sal, cebola, alho, salsa, curry, gengibre, noz-moscada, pimentão, páprica, mostarda, pimenta chilli, pimenta branca, pimenta preta, pimenta-do-reino, erva doce, pimenta calabresa, cardamomo, cominho , baunilha, segurelha, anis, hortelã, mortadela. Estes sao os que eu lembro de cabeça. A lista completa durou 3 minutos. Então ela disse que o paladar dela é muito sensivel. Sensivel é meu saco!



Tendo cumprido a "tarefa dread", eu estava pronto pra ir embora. Por educação perguntei se ela gostaria de ir comigo ao aniversáio de uma amiga, uma reuniãozinha, apenas uma dúzia de pessoas. Ela topou! No caminho, fiz algumas recomendações. Ela começou bem: quietinha, sentadinha, caladinha. Aos poucos foi se soltando, respondendo quando falavam com ela. Depois passou a falar com as pessoas, e a levantar pra pegar uns pãezinhos com patê. Quando ela ouviu falar em comida, se transformou: "O que é esse tal de xinxim? Eu quero, eu quero!". Depois que a dona da casa a viu rondando o fogão pela terceira vez, concluiu que deveria oferecer o xinxim. Ela foi a primeira pessoa a comer! Deve ter comido uns 4 pratos (é uma estimativa, eu parei de contar no terceiro). Eu estava meio envergonhado, mas pensava que a coisa pararia por ali. Que nada! Tinha o bolo. Eu fiquei excitado com os olhares que ela lançou ao bolo! Faltam-me palavras para descrevê-los. Aí começou o dilema: "A Lili deve de tar preocupada comigo", "Eu preciso falar com ela", "O meu celular descarregou", "Eu nao sei o telefone dela", "Eu preciso falar com ela", "Eu preciso ir embora", "Eu preciso comer este bolo", "Eu preciso ir embora", "Eu preciso comer este bolo". Disse que ficaria "de mar" comigo se eu não desse um jeito de ela comer o bolo. Eu, salomônico e educado, perguntei a Geninha se a gente iria cantar os parabéns pra Márcia. Geninha achou que era bem lembrado, já estava na hora, tinha um casal amigo querendo ir embora. Cantamos os parabéns. Só que depois dos parabéns todos voltamos aos nossos afazeres etílicos. A moça pirou: "Como assim? Canta parabens e não parte o bolo? Eu nunca vi disso! Bando de malucos! Cachaceiros!". Felizmente ela falava só comigo, acho que ninguém percebeu. Velho, não é que ela pediu a Geninha pra comer o bolo?!? Comeu 6 pedaços e foi embora, feliz da vida. Você acredita que o povo gostou dela?!? Realmente eu só ando com malucos!


Me ligou na quarta-feira, me chamando pra despedida. A esta altura eu já tinha uma solução pra tarefa do reggae, depois de ter pesquisado em 16 sites do tipo agenda cultural. Numa quarta-feira não era fácil, e havia a questão da localização, o bar não deveria ser muito longe de onde ela estava hospedada. Ela já tinha decidido qual seria o bar do "bota-fora", segundo ela tratava-se de um bar famoso, tipo o "Albano's". Chamava-se "À-tôa". Eu nunca tinha ido ao bar, e nunca tinha ouvido falar. Deve ser porque eu saio pouco. Fui. O tema dominante na mesa foram as tais aulas de surf : "Sou eu e 70 noruegueses, eu surfo melhor do que todos eles, ta um problema sério na praia porque os caras todos ficam me olhando, as norueguesas tão todas revoltadas, eu tenho receio de causar um incidente diplomático, blablabla...". A gente ouvia e dizia "Hum... hum...". Não íamos contrariar, né?


No bar, durante a maior parte do tempo tocou Ana Carolina, o repertorio deprê. Pensei: aqui é o primeiro tempo, ela quer estar com a turma toda, algumas pessoas têm compromissos amanhã cedo, depois parte da galera vai "cair no régue". Engano meu. Ela não podia dormir tarde, porque no dia seguinte faria aula de surf às 6 da manhã! Existe no mercado desde a década de 50 uma substância, o metilfenidato, que vem sendo utilizada com sucesso no tratamento dessas coisas...


A pobre da Lili estava muito preocupada. Confidenciou - com voz embargada e lágrimas nos olhos - que a moça levantava durante a madrugada, abria os olhos, andava pela casa, falava, resmungava, falava mais, discutia, ficava olhando pro teto, depois voltava pra cama, fechava os olhos e ficava completamente imóvel. Na manhã seguinte não lembrava de coisa alguma. Lili perguntava se ela havia dormido bem, e ela respondia "Ótima, como uma pedra". E não lembrava de qualquer passeio, sonho, ou pesadelo.


Eu não tenho nada a ver com isso, inclusive não me sinto bem opinando a respeito de critérios ou atitudes de familiares, pessoas que não conheço - e que certamente têm boas intenções - mas penso que a questão poderia ser abordada de uma outra forma. Atualmente grandes especialistas defendem que a internação não é a melhor alternativa, e sim o tratamento com terapias e fármacos, em regime aberto, sem que o paciente seja privado do contato com a família. Especialmente em casos de pacientes que vistos de uma certa distância parecem normais. Dizerem à moça que vão mandá-la pra Miami e internarem-na numa instituição no interior de SP... sinceramente... eu acho golpe baixo!


Eu nunca mais soube da moça. A minha amizade com Bruno ficou meio abalada.

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